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O que significa “LER”?



Ler é um ato relevante que praticamos a cada instante, desde o nosso nascimento, visto que lemos um rosto, lemos uma expressão, lemos a voz que nos fala, lemos uma paisagem, lemos a nós mesmos (às vezes com dificuldade).

 

Essa pequena palavra de 3 letras, veio do grego. Para os Gregos, ler significava “dizer”, “designar” e “significar”. Os Romanos também nos transmitiram com a nuance “colher pelos ouvidos e pelos olhos”.

 

Uma rápida excursão pela escrita chinesa revela que a língua chinesa expressa a ideia de ler com dois ideogramas diferentes:

 

Ø  “Ler com os olhos” (kàn: proteger seus olhos dos raios do sol)

Ø  “Ler em voz alta, pensar, estudar” (nian: evocar o passado no presente, lendo, recitando e cantando, daí, pensar, estudar).

 

Isso é ainda muito mais relevante porque essas duas realidades correspondem, efetivamente, a duas atividades diferentes no cérebro, como mostram as imagens obtidas por neurocientistas, utilizando a ressonância magnética ou tomografia computorizada.

 

Em japonês, o ideograma que significa “ler” (yomu) é também complexo, ele evoca que uma palavra “foi dita com a voz”...

 

Ler é um ato neurocultural. Esse ato extremamente importante precisa ser construído e questionado.

 

O impacto de nossas culturas sobre nossas leituras e escritas (e vice-versa) é inegável. Um ato tão usual como ler não ocupa o mesmo lugar em todas as culturas. Porém, seja qual for a cultura, o nosso ponto de partida é sempre o mesmo: temos que estabelecer relações entre nosso “pensamento”, nossas linguagens e o que nós chamamos de “realidade”, esta última sendo definida como “o que resiste”2 e poderia ser acrescido aqui: o que resiste “em vários níveis”. As relações entre o pensamento, nossas linguagens e a realidade precisam ser reconstruídas, continuamente, porque elas não são definitivas. Muitas vezes, o que nos escapa é que essas relações operam em ambas as direções: o pensamento age sobre a linguagem e a linguagem age sobre o pensamento. Nós estamos em interatividade, em interdependência e em autorreflexividade. O pensamento e a linguagem constroem-se mutuamente e se autoconstroem ao mesmo tempo.

 

O que se encontra na base da relação pensamento <=> linguagem e que está no funcionamento de qualquer organismo vivo é o vínculo que conecta, em permanência, a percepção e a ação, permitindo não só a troca, mas também, a plasticidade, a mudança, a inovação, a mediação e com isso, a evolução, como definiu o neurobiólogo Francisco Varela.

 

É incontestável que essa conexão percepção <=> ação funciona para cada um de nós, independentemente da nossa cultura, nossa idade, nossa afiliação. É também evidente que ela está presente na evolução (provavelmente na revolução) que está ocorrendo em nossa relação com a linguagem, por causa de – ou graças aos avanços da tecnologia.

 

Todos nós podemos observar que a informática, internet e os telefones celulares (entre outros) influenciam fortemente nossas trocas verbais que se multiplicam e se modificam, tornando-se cada vez mais frequentes, cada vez mais curtas, cada vez mais concentradas, íntimas...

 

Tudo isso precisa ser questionado. Será que somos capazes de reconhecer em que contribuímos e a que renunciamos nesta (r)evolução de nossas relações com a língua escrita?

 

Nosso papel, no que se refere aos leitores aprendentes, adolescentes ou adultos, também está mudando. Mais do que nunca, precisamos avançar juntos, como no voo das aves migratórias cuja formação em V permanece constante graças ao revezamento feito pelos próprios pássaros.

 

No século XXI, ler ainda é um assunto que concerne a todos porque a escrita nunca foi – e não pode ser – assunto de um único escritor e de um leitor. Hoje, mais do que nunca, a aprendizagem da leitura, da escrita não deve ser isolada de outras habilidades linguísticas, para que não fique “fora do solo” e perca o laço com o Vivente.

 

Antes de entrar no assunto propriamente dito, é preciso fazer aqui mais duas observações: 

 

A primeira observação, sem dúvida, já foi pensada ou expressa: é um texto que deveria estar presente em todas as salas de reunião e em todas as salas de aula...

 

Entre o que pensamos, o que queremos dizer, o que acreditamos dizer, o que dizemos, o que ouvimos, o que o outro quer ouvir, o que o outro ouve, o que o outro acredita compreender, o que o outro quer compreender… e o que o outro compreende, existe pelo menos oito possibilidades de conexão com algo diferente daquilo que nós pensamos...” (autor desconhecido). 

 

A segunda observação é que muitos ainda se representam a linguagem de maneira linear e restrita, ou seja, uma linha reta indo do emissor ao receptor (com um retorno no melhor dos casos).

 

Mas hoje, graças às tecnologias, temos a possibilidade de fazer evoluir essa concepção linear da linguagem e aproximá-la da nossa realidade cognitiva.

 

As imagens médicas revelam uma ativação cerebral diferente para palavras ouvidas, visualizadas, emitidas e pensadas. Elas mostram também a diferença de ativação entre um cérebro que lê, de maneira silenciosa e o mesmo cérebro que lê em voz alta. Praticamente, as mesmas áreas são estimuladas, mas, uma forte ativação da área da fala se manifesta na leitura em voz alta.

 

As pesquisas em Neurociências mostram que pronunciar uma palavra ouvida e pronunciar uma palavra que é lida são dois processos diferentes. Isso permite compreender que uma pessoa surda é privada de fala não por causa de uma deficiência de sua capacidade de fala, mas, por causa de uma conexão inexistente – ou interrompida – entre a área auditiva e a área da fala. A descoberta dessa relação anatômica e fisiológica entre as áreas visual, auditiva e fonatória revolucionou a pedagogia da aprendizagem de uma língua estrangeira. Essa descoberta incita a prolongar o período de escuta, torná-la mais ativa e fazer uma etapa preparatória para a fala da língua estrangeira.

 

Quanto ao face a face do aprendente-leitor com o nosso sistema de escrita ocidental – alfabético e fonológico – ele deve ser colocado, levando em conta os fatores envolvidos no ato de ler: o campo visual, a orientação da escrita da esquerda para a direita e o “trabalho cerebral”, correspondente nos dois hemisférios.

 

Precisamos lembrar que é o cérebro que vê. A construção da imagem visual na região occipital de nosso cérebro é um processo muito complexo porque a imagem que é construída na área occipital é o resultado de uma dupla reversão dos estímulos, vindo do olho (dupla inversão direita/esquerda e de cima/para baixo). Além do mais, é preciso saber que a imagem formada no nosso cérebro é o resultado da contribuição das camadas profundas de nosso cérebro. Nós a criamos com nossas experiências, nossas lembranças, nossos medos, nossas esperanças, nossa história! Segundo o neurobiólogo Francisco Varela, a retina contribui somente com 20% na elaboração da imagem visual cerebral3.

 

É necessário então ter em mente as características da escrita que herdamos: Nossa escrita é de herança greco-latina, ela é linear, não reversível, alfabética, vocálica, horizontal e ela se desdobra da esquerda para a direita... Por exemplo, para a língua francesa, 26 letras representam 36 fonemas..., resultado de uma longa evolução, numerosas influências e transformações progressivas. Toda escrita tem uma história! É o que deveríamos sempre dizer aos aprendentes-leitores. Os gregos são responsáveis pela mudança de orientação da esquerda para a direita e pela introdução de vogais na estrutura consonantal que eles próprios herdaram. Ao vocalizar a escrita, os gregos reforçaram a submissão da língua falada a parâmetros visuais e espaciais.

 

Essa evolução teve 3 consequências que constituem três obstáculos principais para o aprendente-leitor dessa língua:

 

·        A dessensorialização da escrita. Não há mais ligação entre signo (a letra) e o significado.

·        A descontextualização do que está escrito. Tendo se tornado a unidade última (como era o átomo, o indivisível para os gregos) a letra deve ser associada e combinada para constituir a palavra que, por sua vez, deve ser combinada para constituir uma frase...

·        Um alto nível de abstração. Há descontinuidade, até mesmo ruptura com o contexto, entre o escritor e o leitor. A mensagem é adiada. O pensamento é interiorizado, ele se torna, inclusive, autônomo, como o escritor e o leitor. O que, sem dúvidas, permitiu, a partir da Renascença, fazer da linguagem um objeto de ensino. Agora estudamos a própria linguagem e a língua.

 

O resultado dessas três consequências é que o leitor ocidental que utiliza o alfabeto latino deve administrar, ao mesmo tempo, três tipos de relações:

 

·        Uma relação semântica que estabelece a relação ao sentido, comum a todos os sistemas de escrita.

·        Uma relação grafo-fonológica que estabelece a relação entre o signo e o som, visto que, “tudo se escreve” (relação inexistente para os sistemas ideográficos e pictográficos).

·        Uma relação sintáxica que estabelece uma hierarquia (logo, um dogmatismo) entre os elementos da frase.

 

Lembremos que o mundo oral, o da criança e do adulto cuja cultura ainda é oral, é um mundo espontâneo, simultâneo, efêmero, transportado pela voz graças a qual a afetividade, o ritmo, a duração, os gestos presidem a mensagem: o mundo oral precisa da presença do Outro.

 

Precisamos lembrar também que a palavra, para a criança, tem um valor de frase. Ela representa e expressa uma situação. O psicólogo russo Lev Vygotsky explica isso de maneira esclarecedora. O que os adultos chamam “palavra” recebeu seu status ao longo da evolução da escrita. Os gregos deram à palavra um status autônomo ao fazerem rupturas no continuum do texto escrito. Ao introduzir as vogais, eles permitiram o surgimento das desinências e das alterações que se tornaram indicações da função da palavra na frase.

 

Quais são nossas capacidades cognitivas de base? Quais são nossos pontos de apoio para estabelecer solidamente as relações da triangulação?


um diagrama que representa as relaçoes entre pensamento, linguagens, niveis de realidade


Essa triangulação carrega consigo a imensidão de nossos recursos. Nós somos ricos de um potencial infinito que ignoramos com muita frequência. Aqui foram privilegiados quatro recursos sobre os quais nós podemos nos apoiar para compreender a realidade da leitura:

 

1° ponto de apoio:

As capacidades e as estratégias cognitivas que precisamos para ler são as mesmas que usamos todos os dias, desde o nosso nascimento (isso é uma boa novidade!)

Elas são: Conectar, distinguir, reconhecer, identificar, associar, combinar, comparar, categorizar, lembrar, antecipar, expressar, interpretar, procurar compreender, reorganizar... (além de suas combinações, suas nuances...).

 

2° ponto de apoio:

Nosso sistema visual total (e não somente nossos olhos) constrói o que vemos. A retina participa com apenas 20% na elaboração da imagem produzida por nosso córtex visual, sendo assim, são nossas memórias, nossas experiências, nossas emoções, nossas crenças que participam em grande parte (80%) nas nossas diferentes leituras (textos, rostos, paisagens)4

 

3° ponto de apoio:

O nosso cérebro inteiro (ou seja, todo o nosso corpo) está envolvido em nossa vida cognitiva. A história dos nossos “3 cérebros”5, nos ajuda a compreender que nós somos – mesmo se ignoramos – envolvidos em uma tripla lógica, a do Vivente, a da nossa espécie humana e a do nosso contexto, nosso espaço-tempo. Para sobreviver, nós precisamos nos conectar com o meio ambiente, com os Outros e com nós mesmos.

 

4° ponto de apoio:

Este ponto de apoio contém a segunda palavra-chave de toda a aprendizagem: “reorganizar” (a primeira, sobre a qual já falamos é “conectar”). Ao contrário do que acreditamos, quando nós aprendemos alguma coisa, nós não acrescentamos um elemento a outros elementos precedentemente “adquiridos”. Na realidade, aprender exige uma reorganização. APRENDER é acolher o elemento novo dentro do que já existe. Para acolhê-lo precisamos reorganizar o que nós já aprendemos, ou seja, organizar o que estava antes.

 

Resumindo ...

 

Para construir, nós precisamos de materiais e de abordagens que sejam coerentes com o nosso funcionamento de base e com o que caracteriza o humano: sua busca de sentido.

 

Entre as inúmeras soluções possíveis, aqui estão algumas sugestões:

 

a)     Construir nossas atividades de aprendizagem apoiando-nos na duas palavras-chave do Vivente: conectar e reorganizar;

b)     Privilegiar as abordagens destinadas a despertar de maneira contínua, mantê-las em boas condições, tornar criativo o triângulo da relação “pensamento <=> linguagens <=> realidade”;

c)      Explicar para aquele que aprende o que é uma língua, ou seja:

·        Contar a história das escritas e a do cérebro;

·        Enraizar a atividade na história individual e coletiva;

·        Buscar a troca “verdadeiramente” fora dos muros;

·        Desenvolver as imagens mentais (visuais, auditivas, cinestésicas) das letras, das palavras, das frases que são e serão aprendidas

d)     Posicionar as atividades de aprendizagem no espaço-tempo (antes, durante, depois) e na duração (curto prazo, prazo médio, longo prazo)

e)     Construir “trens de saber-fazer”, ou seja, conectar o dizeró ao leró ao escreveró ao ouviró ao dizer novamente ou de outro modo etc.

f)      Abrir sistematicamente o questionamento:  eu me pergunto se...

g)     Fazer regularmente o inventário da situação: o que aprendi..., o que me ajudou, o que me impediu...

h)     Construir um diálogo permanente com as pessoas envolvidas.

 

Como não é possível concluir o que é movimento e emergência..., a melhor maneira de interromper (momentaneamente) essa reflexão é confiar aos interessados a tarefa de colocar em perspectiva o que foi dito, a partir das palavras coletadas. A seguir um exemplo:

 

aprender é como uma primeira vez

ler é como encontrar alguém

aprender a ler é como um pássaro que levanta voo

...

 

A imagem do voo dos pássaros unidos em sua jornada, em sua migração para outros lugares, para outras partes, é isso que significa ler!

 

Texto de Hélène Trocmé-Fabre. Tradução de Mara Welferinger


Para conhecermos mais:

Calvet, L.J., História da Escrita, Plon, 1996

Druet R. et Grégoire H., A civilização da escrita, Fayard, 1976

Ferreiro E., A escrita antes da letra, Hachette, 2000

Février, J.G., História da escrita, Payot, 1984

Illich I.et Sanders B., ABC, a alfabetização do espírito popular, La Découverte, 1990

Kerkhove D., A civilização vídeo-cristã, Retz, 1990

Kristeva J., A linguagem essa desconhecida, Seuil, 1981

Ouzoulias A., Promover o êxito na leitura: les MACLE, Retz, 2004

Varela, F., Autonomia e conhecimento, Seuil, 1989

Vygotsky, L.S., Vygotsky hoje, textes de base en psychologie, Delachaux et Niestlé, 1985

Um site apaixonante: o da Universidade McGill (Montreal, Canada) : www.lecerveau.mcgill.ca


2 Definição de Basarab Nicolescu, físico quântico. Cf. o filme Nascemos para descobrir as Leis do Vivente, H. Trocmé-Fabre, realização D. Garabédian, distribuição SFRS.

3 F. Varela, cf. Nota 4

4 Cf. os trabalhos de Francisco Varela, Autonomia e Conhecimento, ensaio sobre o Vivente, Seuil, 1989, p. 212 e principalmente a entrevista na série de filmes Nascemos para aprender, SFRS, Vanves, France. (info@cerimes.fr)

5 Na realidade nos temos 4 como mostrou o neurologista A. Luria, Cf. H. Trocmé-Fabre, Aprendo, logo existo.

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