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CRIAR, INOVAR


arvore enraizada na arquitetura extraordinaria em Angkor Wat

Uma breve constatação

 

As próteses tecnológicas nos conectam, cada vez mais, a um novo mundo virtual e, ao esmagarem o tempo e o espaço, tornam mais difícil nosso enraizamento na realidade do Vivente. Embora hoje em dia possamos falar de transdisciplinaridade, nós constatamos que existem separações cada vez mais restritas entre os nossos diversos pontos de vista. No mundo atual, a palavra “compreender” precisa ser revisitada com urgência.  Compreender é construir e descrever o mundo. O percurso para compreender é composto de várias etapas e exige que possamos entender a frase de Hannah Arendt “os humanos embora devam morrer, não nasceram para morrer, mas para inovar”

 

Voltar à origem dos nossos recursos

 

A primeira etapa consiste em deixar o “depois” para voltar ao “antes” e nos questionar sobre os recursos que abrigamos, muitas vezes sem conhecê-los ou reconhecê-los.

 

Os dados científicos que nos concernem e que obtivemos, recentemente, são sólidos pontos de apoio e até mesmo uma verdadeira caixa de ferramentas para explorar a nossa relação com uma realidade em evolução. Os números do potencial humano são impressionantes1. Nosso potencial de plasticidade, de flexibilidade, de mudança é traduzido em capacidades (renováveis e sustentáveis) para criar, inovar e inventar. Ao mesmo tempo, podemos compreender que a nossa diversidade é o resultado das nossas escolhas de conexão, associação, bifurcação... que são a consequência daquilo que compartilhamos com todos os Viventes, ou seja: acolher a vida e as suas exigências.

 

Na origem, encontramos a palavra-chave daquilo que somos: organismos vivos que obedecem, cada um à sua maneira, à mesma exigência de se conectar. Nossa função como Vivente e, a fortiori, como ser humano, é atualizar nosso potencial de conexão (religância?2). Em outros termos, estamos constantemente em um “ainda não atualizado”: recursos ainda não explorados, capacidades ainda não descobertas, novos hábitos ainda não identificados; associações ainda não realizadas, organizadas, estruturadas; uma orientação ainda não escolhida, decidida; uma filiação ainda não compreendida, compartilhada, adaptada, integrada em um novo quadro; um novo mundo que ainda não construímos juntos3.

 

Toda situação é cognitiva

 

O campo da cognição, ou seja, a atividade (o trabalho!) de pensar, amar, desejar, imaginar, falar, antecipar, agir... foi há muito tempo confiscado por especialistas em patologias fisiológicas, cerebrais, mentais, psicológicas... Nós sabemos agora que a atividade do cérebro nunca para, dia ou noite, e que nenhuma divisão separa as emoções do nosso raciocínio, das nossas ideias, da nossa imaginação, das nossas ordens motoras, das nossas sensações, dos nossos medos...

 

Podemos representar a conexao das nossas capacidades cognitivas por meio de um triângulo cujos os três vértices são ocupados pelo “pensamento”, pela “realidade” e pelas nossas diferentes “linguagens”. Este triângulo sublinha a onipresença da conexão (religância) no centro dos nossos processos cognitivos4.

 


           

esquema do duplo fluxo de relações entre o pensamento, as linguagens e a realidade.

 



De um pólo a outro, as relações constituem um duplo fluxo de influências recíprocas, muitas vezes desiguais. Os dois movimentos (retro e pró-ação) são uma das condições necessárias para nos abrirmos a uma nova dimensão, descobrir um novo horizonte, modificar uma amplitude, reorientar um olhar.

 

A abordagem criativa

 

Parece lógico e evidente compreender que uma abordagem criativa deve respeitar as exigências do nosso organismo (um “todo dentro de um meio ambiente”, como definiu Alfred Korzybski em 1950).

 

Embora Newton, Darwin, Einstein sejam casos excepcionais, o estudo das suas estratégias permitiu identificar os mecanismos subjacentes à criatividade e evidenciar algumas características encontradas nesses casos. Quais as caracteristicas que eles têm em comum:

 

  • Eles têm múltiplos centros de interesse e um alto nivel de aspiração.

  • Eles têm a capacidade de lidar parcialmente com um problema e deixar de lado o que não pode ser totalmente resolvido imediatamente; eles sabem acolher o que estar vindo; eles permanecem disponíveis.

  • Eles usam imagens de grande alcance (metáforas cujo poder criativo é bem conhecido).

  • Eles têm uma capacidade de “bisociação”, palavra utilizada por A. Koestler para designar a brusca associação de duas ideias.

  • Eles praticam a flexibilidade: eles passam facilmente e rapidamente de uma atividade para outra; eles se sentem bem ​​em vários campos (Ex: Bertrand Russell estudando filosofia, matemática, ciência política internacional, pacifismo, desarmamento).

  • Eles têm a capacidade de se concentrar em um ponto específico, manter o sentido do todo (o “glocal” de Edgar Morin) e ao mesmo tempo permitir que certos problemas não resolvidos amadureçam: Newton, postulando a força da gravidade e já pensando na estrutura da matéria, um problema não resolvido no momento).

  • Eles têm um conhecimento muito avançado em um campo (os gansos-cracas para Darwin; as 1000 mãos para Leonardo da Vinci etc.)

  • Eles têm uma vontade de ferro (são trabalhadores obstinados).

  • Eles consideram o trabalho como um jogo. Não se encerram nos hábitos, sem inibição cultural.

  • Eles nunca perdem de vista seus objetivos (ao contrário dos fanáticos que redobram os esforços quando perdem de vista o objetivo)

  • Eles estão enraizados no aqui e agora; eles têm a noção da coisa certa no momento propício.

  • Eles têm a capacidade de se distanciar da norma; de assumir riscos (isolamento, sarcasmo, perda de emprego); eles ousam lançar o desafio.

 

Quanto a nós que não somos nem Leonardo da Vince, nem Darwin, nem Einstein, nós precisamos de uma quadro de referência, um referencial de capacidades que respeite a ordem lógica das etapas de atualização do nosso potencial cognitivo.

 

Para alcançar e desenvolver nossas capacidades de inovação, é indispensável atualizar previamente outras capacidades.

 

Vamos então relembrar essas etapas para guardá-las na memória7, vamos também mostrar a eficácia da abordagem que consiste em evitar, em cada fase, dois tipos de armadilhas: por um lado, uma insuficiência da capacidade em questão, por outro lado, o seu excesso.

 

1ª Etapa: Saber-descobrir

Armadilhas: a percepção é substituída por automatismos. Nós nos contentamos de uma percepção imprecisa ou “monossensorial” (unicamente visual ou somente a auditiva ou apenas a cinestésica). Nós ficamos presos ao contexto habitual, sem transferência possível. Temos a certeza de que o que percebemos é a realidade.

 

2ª Etapa: Saber-reconhecer as leis do Vivente

Armadilhas: Usamos uma única escala, reduzimos a realidade a um único código, a uma única lógica (a binária), a um só tipo de relação. Ignoramos a complexidade, o aleatório... Acreditamos que as leis são imutáveis e que os números são uma referência perfeita, sem falha.

 

3ª Etapa: Saber-organizar

Armadilhas: Ausência de organização. A informação é considerada como externa a nós mesmos, predeterminada. Categorizamos, generalizamos demais, abstraímos de maneira excessiva. Esquecemos a flexibilidade do Vivente. Fechamos a porta ao imprevisto. Nossas certezas decidem das coisas. Não nos questionamos. O emocional e o racional estão separados.

 

4ª Etapa: Saber-criar o sentido

Armadilhas: Pensamos que o caminho traçado pelos mais velhos é o único válido. Que o sentido é “dado” (que ele não emerge da situação). Ignoramos que nosso organismo escolhe constantemente (escolhe mesmo não escolher!). Nós nos apropriamos... e impomos “a” verdade.

 

5ª Etapa: Saber-escolher

Armadilhas:  É a dependência ao modelo. Aceitamos a escolha de um outro. Nossas decisões não estão enraizadas em nosso sistema de valores. Perdemos de vista o objetivo, fazemos escolhas dispersas. Nós nos prendemos a uma avaliação quantitativa de performances. Ignoramos o processo de mudança (privilegiamos o estado das coisas).

 

6ª Etapa: Saber-criar, inovar

Armadilhas: A imitação e a repetição predominam. Esquecemos que o gesto criativo é inerente a todos nós. É o que acontece com quem cria somente por criar, ou para dominar ou mesmo para possuir.


7ª Etapa: Saber-compartilhar

Armadilhas: Adotamos uma concepção monolítica da linguagem (uma única maneira de dizer as coisas). Separamos a teoria da prática. O eixo dar ó receber está desequilibrado e se torna:  dar => enviar sem cuidado e receber => tomar. Não há reciprocidade.

 

E agora? Perspectivas...

 

Nossas situações de comunicação serão infinitamente renováveis se as palavras-chave do Vivente “religar”, “reconhecer”, “se saber em devir” presidirem o Encontro.

 

Os sujeitos do verbo criar (QUEM cria) potencialmente, são muito numerosos porque são todos os parceiros (que precisamos ir buscar!)

 

O que precisa ser criado (o QUE) é infinito: podemos criar um espaço, uma necessidade, uma nova configuração, novos laços, novas trocas, uma nova organização, uma nova duração, uma nova atitude, uma nova postura, uma nova engenharia, novas ferramentas, uma nova linguagem, um novo olhar...

 

Os ONDE e os QUANDO CRIAR podem variar. Isso deve ser negociado com a Instituição. É uma oportunidade interessante para colocar a questão da parceria e desencadear a troca sobre o grande PORQUÊ dos parceiros: em nome de que fazemos, o que fazemos?

 

O PARA QUE e PARA QUEM CRIAR também devem ser ajustados com os demais parceiros para que se possa decidir o que se vai colocar no curto prazo, no médio prazo e (aquele que sempre esquecemos!) no longo prazo.

 

O COMO CRIAR é muitas vezes abordado muito cedo, antes das respostas às questões anteriores terem sido estabilizadas. Esta é uma causa de não realização, para não dizer de “fracasso”.

 

O importante é saber que “uma verdadeira criação vem de bem mais longe, de bem além de si mesmo” e que “para criar é preciso um espaço de liberdade”. Cabe a nós sabermos utilizar nossas experiências passadas, sem nos prender a elas. Cabe a nós acolhermos as diferentes faces dos nossos “ainda não”.

 


Texto de Hélène Trocmé-Fabre, traduzido e adaptado por Mara Welferinger

Imagem de Eric Harmel


1 100 bilhões de neurônios, 10 elevado a 16 potência pontos de conexão (nossas sinapses), uma renovação de 98% de todos os átomos de nosso corpo em um ano etc.

2 “Religância” é uma palavra inspirada do conceito de “reliance” criado por Hélène Trocmé-Fabre, na França. Segundo a autora, essa palavra corresponde mais ao que faz o Vivente, ou seja, ele “religa” em permanência. 

3 Nosso potencial foi descrito por cientistas entrevistados na Série de filmes Nascemos para Aprender.

4 Essas três palavras devem ser revisitadas também porque suas dimensões e seus territórios evoluíram consideravelmente. Pessoalmente, prefiro falar de “vida cognitiva”.

5 Nossas línguas escritas e orais (2 saber-fazer orais, 2 saber-fazer escritos), nossos gestos, nossos olhares, nossas posturas, nossas atitudes, a “proxemia” (E. Hall).

6 Significado de « real » por um físico quântico: “o que resiste”.

7 Esse referencial cognitivo foi publicado com o título “A Arvore do Saber-Aprender”

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